Ajudar “fora do gabinete”
O programa de psiquiatria comunitária da Unidade de Saúde Mental Comunitária do Pinhal Interior foi premiado pela 9ª edição do Prémio Boas Práticas em Saúde. A equipa do ACONTECE acompanhou a deslocação de um dos grupos no trabalho comunitário.
“Ele pareceu-me muito bem”, diz António Correia, enfermeiro especialista em saúde mental. O médico psiquiatra Jorge Carvalheiro concorda. ”Parecia-me subnutrido. Podíamos lá passar para ver como está”. A equipa já está reunida e a fazer o ponto de situação. Cerca de 60 km separam o centro de saúde de Figueiró dos Vinhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). É mais um dia de trabalho comunitário.
“Sabia que esse senhor se suicidou a semana passada?” pergunta o enfermeiro Correia, em conversa com Ana Araújo, médica psiquiatra. A história é sobre um antigo doente. “São casos que nunca se ultrapassam. Quando estas questões acontecem procuramos sempre avaliar em equipa, e conversamos para nos apoiarmos uns aos outros”, diz-nos a médica ainda consternada com o que acabara de ouvir.
A equipa a que se refere Ana Araújo é constituída por médicos, enfermeiros, assistentes sociais, secretários clínicos e psicólogos. Todos fazem parte do projeto “Unidade de Saúde Mental Comunitária Leiria Norte – Integração em cuidados de saúde primários” que ganhou o primeiro lugar, na 9ª edição do Prémio Boas Práticas em Saúde.
Iniciado em 2010, o projeto de Psiquiatria Comunitária do CHUC conta com um total de cinco equipas, que viajam por diferentes concelhos do distrito, com o objetivo de assegurar o acesso a cuidados de saúde mental nas zonas mais carenciadas.
Mas voltamos ao Centro de Saúde de Figueiró dos Vinhos, onde António Correia e Olga França, assistente social, já chamam pelo primeiro doente.
“José”, nome fictício, vem acompanhado pela irmã. Tem 75 anos e vive permanentemente num lar. A vida pregou-lhe algumas partidas: ficou viúvo muito cedo com 3 filhas pequenas ao seu cuidado e cumpriu uma pena de 5 anos por homicídio. “José” acredita que lhe querem fazer mal no lar onde vive. António e Olga tentam perceber a origem dos pensamentos do doente, e no final da consulta fica claro que será necessário ir até ao lar para conseguir mais pormenores sobre este caso.
Deixamos o gabinete do centro de saúde e acompanhamos António e Olga nas visitas domiciliárias. O senhor Vicente, motorista de serviço, conhece as estradas de Figueiró como ninguém e leva-nos até ao primeiro destino.
A equipa desloca-se até Figueiró dos Vinhos duas vezes por semana, às terças e sextas-feiras. Entre consultas no centro de saúde e deslocações ao domicílio, têm a responsabilidade de dar apoio a cerca de 50 pacientes.
Chegamos a casa do primeiro doente. À janela, a esposa de “João” já está à nossa espera.
Este trabalho comunitário realizado pelos especialistas em saúde mental garante uma relação de proximidade com o doente. O enfermeiro Correia admite que chega a receber telefonemas de pacientes ao fim de semana e que isso demonstra a confiança que cada um deposita no seu trabalho, o que se torna gratificante. No entanto Ana Araújo entende que, enquanto especialistas em saúde mental, devem saber que “estão próximos e longe. Próximos na relação humana mas distantes no profissionalismo”, e que a formação lhes garante capacidades para fazerem essa distinção.
“João” recebe-nos com um “Bom dia” enquanto a esposa nos convida a entrar. O homem da casa é considerado um “resistente à medicação” o que já gerou alguns internamentos. Um dos objetivos deste projeto é constituir o internamento como último recurso, no entanto Ana Araújo esclarece que nalguns casos se torna inevitável, dada a sua gravidade e complexidade.
Na sala a conversa flui naturalmente e o casal fala sobre os filhos: a filha mais velha está no Brasil, mas mantém contacto com o irmão, que continua a viver com os pais e, recentemente, conseguiu um estágio profissional num lar. As condições financeiras desta família, agravadas pela epilepsia do filho mais novo preocuparam a equipa, o que motivou a visita domiciliar. O enfermeiro Correia procura perceber como é a alimentação da família, e questiona “João” sobre o que irá ser o almoço. O prato do dia é “Bacalhau com Couves”, para aproveitar o que sobrou da refeição anterior. A família alimenta-se com os recursos que a terra lhes dá. Na parte detrás da casa, o quintal é o passatempo da esposa de “João” o que motiva a assistente social, Olga França, a insistir com o paciente para acompanhar a esposa nessa atividade, pois as distrações favorecem o quadro clínico da maioria dos doentes. Já António Correia alerta para a importância da toma da medicação.
Deixamos o casal e seguimos viagem em direção a Almoster (Alvaiázere).
No carro, o enfermeiro e a assistente social comentam o estado do paciente que acabámos de visitar, e ambos concordam que ainda que com poucos recursos, a família tem uma grande capacidade adaptativa e a situação parece controlada. “Inicialmente era um senhor muito desconfiado, com uma postura fechada e
um olhar vazio. Com o tempo foi ganhando um sorriso no rosto” conta Olga sobre a evolução deste paciente.
O relógio assinala as 13 horas, e o enfermeiro Correia sabe que é mais um dia em que o almoço fica para depois, até porque em dias de Psiquiatria comunitária, os horários são o menos importante.
Em Almoster fazemos soar o sino para saberem que chegamos. À porta vem “Joaquim” mais a mãe para nos receber.
Na sala podemos ver o pequeno altar que o paciente foi construindo. Sabe o nome de todas as figuras religiosas a quem dirige todos os dias as suas orações, pois vê na fé uma esperança para a sua esquizofrenia. Os especialistas em saúde mental tentam, também neste caso, perceber se a toma da medicação está a ser seguida à risca e em que ambiente o doente tem vivido desde a última visita. Dão os parabéns a “Joaquim” por se manter ativo e ocupado com o trabalho no campo, e ainda antes de sairmos, ouvimos atentamente a lenda que o “Joaquim” sabe sobre o Galo de Barcelos.
De regresso ao Centro de Saúde, Susana Borges, secretária clínica e a psiquiatra Ana Araújo já estão à nossa espera para almoçar. Passa das 15 horas e já não há mais nenhum caso agendado para o dia.
Para a equipa, a hora de refeição serve para descontrair, mas também para falar sobre o dia de trabalho na comunidade. Durante o almoço, o telemóvel toca e o enfermeiro Correia faz uma pausa na sua refeição para atender. É uma doente que precisa de apoio. Quem disse que o dia já tinha terminado?
Afinal é a própria Ana Araújo que nos diz que quando se trata de “pessoas que cuidam de pessoas”, principalmente pessoas com doenças mentais graves, o “acompanhamento é para a vida”.
